O papa Francisco volta a provocar os católicos
O papa Francisco
volta a provocar os católicos
Conversando com fiéis em Roma, o pontífice disse que o cristão que “não
se considere pecador” é melhor que “não vá à missa”
Reprodução
do artigo de Juan Arias, correspondente no Brasil do jornal espanhol EL PAÍS.
O papa Francisco, ao contrário de seus
antecessores que mediam e pesavam as palavras, gosta de provocar. E não o faz
através de pesadas encíclicas ou documentos pontifícios. Provoca os católicos
nas ruas e praças, como há dois mil anos o fazia o profeta inconformista de Nazaré.
Sua última provocação ocorreu na quarta-feira passada conversando
com os fiéis em Roma. Disse-lhes, como a coisa mais normal do mundo, que ao
cristão que “não se considere um pecador” é melhor que “não vá à missa”.
Mais ainda, segundo Francisco, os que vão à missa para aparentar
que “são melhores que os outros”, melhor que fiquem em casa. Não há espaço para
eles na igreja.
Advertiu também, com humor, os fiéis para que quando forem à missa
não façam “fofocas”, comentando, por exemplo, como está vestida a fulana de
tal. Talvez se referisse às cerimônias de casamento. Francisco, quando era
cardeal arcebispo de Buenos Aires, ironizava ao comentar que muitos católicos
assistem a esse tipo de cerimônia sem se importar com a missa, e mais
"como está vestida a noiva e as suas convidadas”.
O novo papa latino-americano está ressuscitando a Igreja do
entendimento e da misericórdia após séculos de inquisição. Está pulando
centenas de anos de teologia e doutrina patrística para levar a Igreja às suas
origens, quando ainda não existiam tribunais de inquisição e quando no centro
de tudo estava a teologia do perdão, e não a do castigo.
Até a chegada de Francisco, os pontífices mediam cada palavra e
até suas encíclicas tinham que passar pela censura da Congregação para a Doutrina
da Fé e do jornal oficial do Vaticano, L´Osservatore
Romano.Não eram livres para dizer o que sentiam com espontaneidade.
Lembro de só um papa, João XXIII -pelo que dizem parecido com
Francisco- que, quando visitava algum bairro pobre na periferia de Roma, ao
falar improvisando, dizia com humor aos jornalistas que o acompanhavam: “Melhor
que tomem nota, porque é possível que amanhã o que eu estou dizendo não saia
publicado no L´OsservatoreRomano”. E era verdade -o censuravam.
Francisco surge quebrando velhos tabus. Não se sente de mãos
atadas quando fala, nem se preocupa excessivamente com a possibilidade de suas
palavras poderem ou não deixar de cabelo em pé certos teólogos conservadores.
Sente-se seguro porque ele fez um link com a
Igreja primitiva, e mais ainda, com os textos bíblicos, antes de que fossem
domesticados pelas diversas teologias ao longo dos séculos. A afirmação de que
se um cristão não se sente pecador é melhor que não vá à missa não deixará de
soar quase como uma heresia a muitos católicos conformistas.
No entanto, essa volta à ideia de uma Igreja não triunfante, não
de justos e santos senão de pecadores, não de eleitos senão dos que buscam a
piedade e a misericórdia, Francisco está resgatando dos evangelhos, dos
ensinamentos diretos do profeta judeu.
Três passagens dos evangelhos de Lucas e João dariam plena razão à
última provocação de Francisco. A primeira é quando é acusado pelos fariseus de
ter ido com seus apóstolos comer na casa de um publicano, uma categoria
considerada como de “pecadores”. Jesus aproveita a crítica feita pelos que se
acham bons e diz: “Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores, ao
arrependimento", e acrescenta: “Os sãos não precisam de
médico, mas sim os enfermos". (Lucas 5, 27-32)
No mesmo evangelho (18, 9-14), aos que se consideravam justos (sem
pecados) e “menosprezavam os outros”, propôs a seguinte parábola: dois homens
foram rezar no templo, um era fariseu (justo) e o outro publicano (pecador). O
fariseu, em pé, para ser visto melhor, rezou assim: “Ó Deus, graças te dou
porque eu não sou como os outros, ladrões, injustos, adúlteros, nem como esse
publicano aí. Eu jejuo duas vezes por semana e dou ao templo o dízimo de tudo o
que ganho”.
Por trás dele, em um canto, o publicano pecador não ousava nem levantar
os olhos e batia no peito dizendo: “Senhor, ajudem-me porque eu sou um
pecador”. Jesus resume: “Digo-vos que o publicano voltou à sua casa
justificado, e não o fariseu”.
No evangelho de João (8,2), um grupo de homens quis colocar à
prova a fama de misericordioso de Jesus com os pecadores e levaram à força até
ele uma mulher flagrada em adultério: “A lei manda matá-la (por apedrejamento).
Tu, pois, que dizes?”. Queriam que Jesus se declarasse contra a lei judaica.
Não sabemos o que respondeu, porque escrevia na terra do templo com o dedo,
enquanto a mulher, humilhada, se encontrava jogada no chão, em uma cena que
deixava enlouquecido o famoso cineasta ateu italiano Pier Paolo Pasolini, que
me perguntava incrédulo: “Mas por que os apóstolos não se interessaram em nos
contar o que Jesus escrevia?”.
Sabe-se apenas que quando Jesus propôs aos acusadores que
atirassem a primeira pedra os que “estivessem sem pecado”, estes começaram a ir
embora, “começando pelos mais velhos”. À mulher em pecado, Jesus pergunta:
“Ninguém te condena? Eu tampouco, vai em paz e não peques mais”.
Os legalistas, incapazes de misericórdia, não perdoaram, no
entanto, o profeta pelo seu gesto de misericórdia com a adúltera e o levaram à
cruz ainda muito jovem.
Francisco está ressuscitando a Igreja que preferia perdoar que
condenar, entender o coração humano em vez de anatematizar, convencido como
está que a Igreja que, por exemplo, faz do confessionário (em expressão sua) um
“local de tortura”, não responde à sonhada por seu fundador: uma Igreja que não
condena ninguém e que deixa o julgamento final nas mãos de Deus, de quem dizia
o profeta Isaías que é mais mãe do que pai.
Não parece Francisco, efetivamente, mais uma mãe que fecha os
olhos às travessuras de seus filhos que um pai severo sempre disposto a
castigar? “Quem sou eu para julgar um homossexual?”, disse aos jornalistas no
avião de volta do Brasil.
Francisco está sendo severo só contra os que violentam os menores
inocentes, isto é, contra os pedófilos dentro da Igreja. Bem mais que seus
antecessores. E também nisso segue as impressões do mestre que chegou a pedir a
pena de morte para quem escandalizasse as crianças. “Melhor seria que
colocassem uma pedra de moinho no pescoço e o jogassem no mar”, disse a seus
discípulos.
Francisco é, na verdade, o primeiro papa a surpreender desde o
primeiro momento ao confessar com coragem: “Eu também peco”.
Quanto aguentará a Igreja tradicional essa revolução repentina?
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